Quando se lançou na produção de móveis antigos Simão já levava uma longa carreira na área dos negócios falhados. No início dos anos 90, visionário como era, vendia porta a porta toques polifónicos para telemóvel. Tinha fé que um dia, quando chegassem os telemóveis, as operadoras os iriam vender sem toques e que ficaria tão rico que teria o dinheiro suficiente para abrir um quiosque só de revistas de caça, sonho roubado a um amigo que lhe roubara o sonho de criar a agência de viagens Marsans, assim como fazer aquela viagem a Lisboa de que os seus pais sempre falaram e nunca concretizaram. Apesar de falido por nunca ter vendido um toque nem acabado um só móvel por falta de madeira antiga estava à beira de concretizar um dos sonhos.
- Este homem padeceu de morte natural, disse o subinspector Correia à vasta plateia que o escutava.
- De morte natural? perguntou 50% da plateia, no caso o inspector Marques. Isto enquanto os outros 50% observavam a cena com curiosidade, nomeadamente o mendigo Tóni.
- Inspector, afaste para lá essa pequena multidão enquanto recolho as provas da cena do crime.
Olhando admirado em redor, e só observando o mendigo num raio de 50 mts o inspector viu-se na obrigação de acrescentar qualquer coisa à conversa.
- Este cheiro a vinho, casta Syrah reserva de 2006, que me inunda as narinas é seu Marques?
- 2007, corrigiu Marques enquanto retirava a vuvuzela espetada no coração do homem que jazia em cima dos cartões do mendigo.
- Você está embriagado? Insistiu o inspector.
- Claro que não meu inspector. Só um pouco tonto. Deve ser do calor.
- É que não há aqui multidão nenhuma, sou só eu e este pobre mendigo. Isto leva-me a questiona-lo se não estará a confundir uma morte natural com um crime hediondo perpetrado por este mendigo que tem as mãos manchadas de sangue.
- Inicialmente também me ocorreu essa ideia, mas pela forma como se deu o ataque cardíaco, veja pelo buraco da vuvuzela, o coração parou tão repentinamente que o indivíduo morreu naturalmente.
O mendigo Tóni assistia à cena impávido e sereno e não resistiu à tentação de participar na conversa.
- Não fui eu que espetei a vuvuzela no coração do Simão. Tirando o facto de ele me ter roubado o sonho do quiosque de revistas de caça, não tinha nada contra ele. Era o meu único bom amigo assim-assim.
- És um bom homem Tóni, acredito na tua mendicidade e nas dificuldades que ela te trouxe. Disse o subinspector Correia colocando a vuvuzela dentro dum saco de provas do Pingo Doce.
- Ele tinha o sonho dos pais, ir um dia a Lisboa. Disse Tóni enquanto questionava os polícias sobre aquelas coisas estranhas que se lhe vertiam dos olhos e lhe escorriam pela face.
- Estás apenas a chorar, reconfortou-o o Inspector Marques. Não é nada de mais.
- Foi isto que lhe provocou o ataque cardíaco, disse o subinspector Correia acenando com um bilhete para a carreira das 15H, Seixal-Lisboa, emitido pela agência Marsan de Alhos Vedros.
- Extraordinário, exclamou Tóni que já não utilizava uma palavra com tantas sílabas desde que tinha ido à Segurança Social no mês passado. Por isso ele estava tão estranho quando lhe espetei a vuvuzela no peito. Roubaram-lhe o sonho, coitado.