(Epístola de S. João Rendeiro aos Coríntios, a Oliveira e Costa e a Armando Vara. Livro dos cheques sagrados 2:3-4.)
Vivem-se tempos difíceis disse o presidente enquanto degustava dois camarões tigres, despedia 12 colaboradores e dava uma vista de olhos no seu novo livro “Testemunho de um banqueiro à PJ”.
Os lucros baixaram e os accionistas pressionam-me. Roubar o dinheiro aos clientes não é suficiente, no último mês nenhum de vós me trouxe um esquema novo e estes camarões que me servem de lanche custam dinheiro. Estais despedidos. Agora ide e espalhai a minha palavra, que eu tenho de ir buscar o meu santo pai que com tanta dificuldade edificou este banco e o cruel governador Constâncio destruiu.
O pai do presidente era um velho como tantos outros, abandonado. Apesar de não ser infeliz no lar onde vivia, tinha saudades. Tinha saudades não sabia bem de que, pois a Alzheimer levara-lhe muitas memórias. Lembrava-se vagamente da moradia do Estoril, de alguns amigos, das festas e dos carros. Do banco restavam-lhe poucas memórias, assim como do hospital onde um dia entrou para dar sangue e de onde saiu com menos um rim.
As más-línguas, assim como a polícia, dizem que foi o seu filho após viciar a sua assinatura que lhe tirou tudo, inclusivamente o rim. O filho desmente, diz que o rim foi um presente de outro administrador do banco. O velho, apesar de tudo, perdoou-lhe como já lhe tinha perdoado aquele disparo acidental que por pouco não lhe ceifou a vida.
A sua pequena reforma de 35.000 euros para pouco dava. Para o lar, esses gatunos na opinião do filho, iam 350 euros e o restante guardava religiosamente o filho na sua conta para despesas logísticas e para um dia, dizia-lhe ele, alguma emergência. O lar até que nem era assim tão mau. É certo que a disciplina era rigorosa mas os maus-tratos nem sempre eram diários. Pior mesmo era a comida. Quente, só uma vez por semana.
Nesse ano, o seu bondoso filho disse-lhe:
O Pai este ano passa o Natal connosco. O Francisco, o seu neto, já tem 5 anos e é altura de o conhecer. Não só a noite da consoada, mas também a véspera. E só regressa ao lar no dia seguinte antes de almoço.
As mãos trémulas do velho procuraram as do filho mas não as encontraram pois a sua vista embaciada uma vez mais o traiu, abraçou o candeeiro por engano mas soube-lhe bem aquele calor. E foi com os passos vacilantes que deixou o lar. À saída tropeçou e caiu.
Quando chegaram ao condomínio privado onde viviam, Francisco que os esperava correu ladeira abaixo para abraçar o avô que só conhecia da televisão. Cumprimentou-o com um aceno e disse-lhe as cotações do PSI 20. O avô emocionado abraçou-o.
Nessa noite, véspera da consoada, a família jantava reunida à mesa. Mas as mãos trémulas e a falta de visão do avô atrapalhavam-no à mesa. As ervilhas caíam da sua colher e sujavam o tapete Armani que a família com tanta dificuldade e esforço havia comprado. Enquanto segurava o copo, o vinho salpicou a toalha Augustus. O filho e a nora irritaram-se com ele.
Precisamos tomar uma providência com respeito ao teu pai, disse Soraia Vanessa do Rego Soares. É verdade, respondeu o coiso. É inadmissível tanto vinho derramado na nossa toalha Augustus o barulho que faz a comer com a boca aberta e as nódoas no tapete que tanto nos custou a comprar.
Decidiram então colocar uma pequena mesa no canto da varanda, lá fora. Ali o velho comia sozinho, enquanto a família fazia a refeição à mesa, com satisfação. A harmonia e a paz tinham regressado aos corações daquela feliz família.
Após ter partido dois pratos Geneviev Lettieu o velho passou a comer as refeições em pratos de madeira.
Quando a família olhava para o velho ali sentado, ao frio, notavam-se as lágrimas nos seu olhos, mesmo assim as únicas palavras que lhe dirigiam eram chamadas de atenção ásperas, sempre que deixava cair ao chão um talher ou um pouco de comida.
O menino de 5 anos de idade assistia a tudo em silencio…
No dia seguinte o pai percebeu que o filho pequeno estava no chão, manuseando pequenos pedaços de madeira.
Perguntou-lhe delicadamente: O que faz, Francisco?
O menino respondeu docemente: Estou a fazer uma tigela para o pai e para a mãe comerem, quando tiverem a idade do avô.
O garoto sorriu e voltou ao trabalho.
Aquelas palavras tiveram um impacto tão grande nos pais que acabaram por ficar absolutamente mudos por instantes. Lágrimas começaram a escorrer dos seus olhos comovidos.
Embora ninguém tivesse dito nada todos perceberam o que tinha de ser feito. Naquela noite, a da consoada, o pai agarrou no avô pelas mãos e gentilmente o conduziu à mesa da cozinha. Ia jantar só, mas não seria na varanda ao frio. A cozinha sempre era um pouco mais acolhedora para comer a sopa de bacalhau que com tanto carinho lhe haviam feito dos restos. Também os talheres e pratos não foram os de madeira mas uns de plástico, comprados numa promoção do IKEA.
O velho, feliz, pediu ainda mais uma coisa ao seu bondoso filho. Se no dia seguinte podia regressar ao lar só depois de almoço.
Que chatice, respondeu o filho. Temos de ir a casa dos Saraiva Jardim por volta das 19H e fica um pouco apertado. Mas no próximo Natal já está assente, almoça connosco dia 25.